Não
sou mulher.
Sou uma exceção, em uma área
-- América Latina e Caribe -- que tem, segundo um relatório da ONU de 2017,
"a maior taxa de violência sexual fora do relacionamento no mundo e a
segunda maior taxa de violência por parte de parceiro ou ex-parceiro".
LEILA GUERRIERO
|
Uma demonstração na
contramão do feminicídio na cidade da Guatemala CRIS FAGA GETTY IMAGES
|
Não sou mulher.
Vivi em, de, por e para a liberdade, a
autossuficiência e a insurreição, e paguei por isso os preços que qualquer
pessoa paga, macho, fêmea, travesti, transgênero, etcetera, de qualquer
orientação sexual.
Ou melhor: sou uma mulher de
classe média, com estudos universitários, sem crença religiosa, com conhecimentos
precisos sobre a anticoncepção, as doenças de transmissão sexual, a consciência
do corpo e os direitos do cidadão que me conferem, com independência econômica,
um trabalho de que gosto e um cônjuge que compartilha as tarefas cotidianas e
que não usa frases que terminam com “para você”, como “Eu lavei os pratos para
você” ou “Eu fiz as compras para você”, já que os pratos e as compras são
assuntos dos dois, não somente meus.
Viajo para onde quero sem pedir permissão;
saio com amigos sem que isso dispare ciúmes de qualquer tipo; não presto
contas; não peço nem dou explicações; não checo telefones celulares alheios nem
fazem isso com os meus; abomino as frases “coisas de garotas”, “conversa de mulheres” ou “o grupo das mamães”, e nunca senti que meu gênero fosse um
empecilho para fazer o que gosto (nem tampouco o contrário: meu gênero não me
facilitou nada).
Por essas e muitas outras,
sou uma exceção – acompanhada por um bom punhado de exceções que não são mais
que isso: um punhado – em uma área – a América Latina e o Caribe – que tem,
segundo um relatório da ONU de 2017, “a maior taxa de violência sexual fora do
casal no mundo e a segunda maior taxa de violência por parte do companheiro ou
ex-companheiro”, apesar de que nos últimos anos dezoito países da região
incluíram leis tipificando o crime de assassinato de uma mulher pelo simples
fato de ser mulher: isso que conhecemos como feminicídio.
Por causa do protagonismo
que tem nesta parte do planeta essa violência exorbitante contra as do meu
gênero – minhas irmãs –, poderiam pensar que colocar sobre a mesa neste 8 de
março temas como a igualdade de salários, as leis de quota ou o chamado teto de vidro equivale a se preocupar com um eczema quando a pessoa tem de se submeter
a uma operação a coração aberto.
Eu me permito pensar que não é assim, porque a
questão vem em conjunto, e de longe.
Algo vai muito mal se é
preciso “explicar” os motivos pelos quais não está certo esfaquear ou esmagar
com pancadas a metade da população; algo vai muito mal se é preciso “explicar”
os motivos pelos quais não é admissível que uma mulher ganhe menos que um homem
se faz o mesmo trabalho; e algo vai muito mal se é preciso “explicar” os
motivos pelos quais não deve haver nenhum mecanismo, explícito ou dissimulado,
que impeça o acesso a um cargo por questões de gênero.
Mas há algo que está
muito mal bem antes de chegar à violência desmedida, à discriminação e à
desigualdade, e que começa com um mundo dividido –por mulheres e por homens– em
azul celeste e rosa.
Um mundo no qual campeiam ideias como “isso não é coisa de
meninas” (e sua contrapartida “essas são coisas de meninas”); ideias como “o
sonho de toda mulher é ser mãe” (e sua derivada: “uma mulher que não é mãe não
é uma mulher completa”); ideias como “a sensibilidade feminina é distinta da
masculina” (o que nos leva de regresso ao princípio: “há coisas de meninos e
coisas de meninas”).
Ideias, estas e muitas outras, que homens e mulheres
repetem ancestralmente como um mantra inquestionável e que são tão perniciosas
–e tão invisíveis– como o teto de vidro.
Há um fio condutor nada
inocente, filho direto dessas ideias, que une, por exemplo, o fato
aparentemente banal de que quase toda a publicidade de artigos de limpeza – ou
de fraldas– esteja dirigida a mulheres e a frase “eu a matei porque era minha”.
Há um fio condutor nada inocente, filho direto dessas ideias, que une, por
exemplo, o fato de que os jornalistas continuem traçando com rapidez artigos
sobre, para dizer o mínimo, “mulheres que dirigem ônibus” (como se fosse preciso
celebrar que seres geneticamente incapazes de mover alavancas tivessem
conseguido uma conquista importante), e o fosso salarial.
Há um fio condutor
nada inocente, filho direto dessas ideias, que une, por exemplo, o fato em
aparência positivo de que sejam organizadas mesas redondas nas quais se
convidam mulheres a falarem de “literatura feminina” (como se isso existisse),
e a dificuldade para ter acesso a certos espaços por questões de gênero.
Enquanto o ativismo de
educar as meninas para “coisas de meninas” e os meninos para “coisas de
meninos” persistir sob qualquer de suas formas, e inevitavelmente se replicar
como um vibrião colérico em todos os campos da vida social, não haverá menos
mulheres mortas e as ideias de equidade e igualdade –em qualquer terreno–serão
graais inalcançáveis.
Por tudo isso, fica claro que esta não é uma guerra de
sexos: porque não é um assunto de mulheres, mas de pessoas.
De todas as
pessoas.
post: Marcelo Ferla
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe sua opinião.