LUZIA
ABRINDO CABEÇAS
Luzia já não está mais entre
nós.
Depois de 11.500 anos, sucumbiu à crise brasileira no último dia de
Pompeia, o incêndio que levou os afrescos que sobreviveram ao vulcão Vesúvio.
A noite do incêndio foi uma
das mais difíceis para mim.
Pesadelo, tristeza, raiva e uma dose de culpa.
No
Congresso, destinei verba parlamentar para o Museu Nacional.
O desastre mostrou
como era pobre nossa visão de tapar buracos no orçamento de organismo que precisa
de uma proteção sistêmica.
Infelizmente, compreendi
tudo isso muito tarde, daí minha tristeza e raiva com as chamas.
Na verdade,
não foi apenas a passagem de Luzia que abriu minha cabeça.
À volta ao jornalismo,
tratando de pequenos museus locais, sobretudo em lugares que precisam deles
para encontrar sua identidade e agregar valor às suas riquezas naturais,
compreendi que eles não são um fardo que deva ser tratado com migalhas.
Na
viagem à Rússia, onde escritores, sobretudo do século XIX, são cultuados, e há
museus de todo tipo, ficou claro para mim que não se trata apenas de preservar
a memória, mas transformá-la também numa fonte de renda através do turismo.
Em viagens pelo Brasil, vejo
quase toda semana algum tipo de museu.
Mantido por um empresário, o Instituto
Ricardo Brennand, em Recife, é uma boa surpresa.
Nele existem, entre outros, os
quadros do holandês Frans Post, que nos deixou belas imagens sobre o Brasil
Colonial.
É uma coleção que só perde para a da própria Holanda.
Tive boa impressão do Museu
Mazzaropi, em Taubaté, construído numa área em que também foram reproduzidos os
cenários dos seus filmes: é um hotel fazenda.
Aqui no Brasil, temos um
pouco o complexo do novo mundo, da permanente construção e destruição.
Nosso
lema parece ter surgido da frase de Marx, que também é o título do livro de
Marshall Berman: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.
Na semana do incêndio,
trabalhava, precisamente, em algo ligado a essa frase.
É o projeto do trem
Minas-Rio, comprado em Três Rios sem ajuda do governo.
Ele vai ligar nove
cidades, inclusive Cataguases, Minas.
Passei por algumas delas e,
em Cataguases, procurei estimular a criação de um museu que fale um pouco do
papel da cidade no modernismo.
Ali houve uma revista antenada com o movimento,
a “Revista Verde”, e um escritor e poeta de destaque: Rosário Fusco.
Não é o primeiro lugar em
que trato do tema.
Na verdade, na semana anterior estive na Bahia precisamente
mostrando o projeto de museu hippie em Arembepe.
No momento em que as cidades
precisam se reinventar para enfrentar a crise, é mergulhando na sua tradição e
cultura que podemos achar uma saída, através da economia criativa.
O que me dói
no incêndio é ter percorrido tantas experiências locais e não ter percebido com
clareza como o Museu Nacional poderia ter sido importante para o Rio de
Janeiro, uma espécie de porta de entrada do Brasil mas que, na verdade,
escondia um dos seus principais tesouros culturais.
Ao invés de uma campanha
para transformá-lo num momento em que se construíam tantos estádios e um Museu
do Amanhã, por que esquecemos o ontem, o anteontem, os dias primordiais de
Luzia?
Havia um ar de decadência no
museu.
Fios de ligações improvisadas, infiltrações, telhas quebradas; enfim,
todos esses incômodos de um corpo velho e mal tratado.
Diante de museus
internacionais bem cuidados e interativos, talvez não nos orgulhássemos dele
como deveríamos.
Agora é tarde.
Mas não
significa que vamos continuar apenas chorando pela perda.
Se o crânio de Luzia,
perdido nas cinzas, conseguir, pelo menos, abrir nossa cabeça, será uma pequena
vitória.
No passado, recusou-se uma
ajuda do Banco Mundial porque não se aceitava o Museu como fundação privada.
Conseguimos criar um bloqueio duplo: arrogância do novo mundo diante do passado
e a ilusão de que tudo deve ser feito pelo Estado.
Não sou inocente nessa
história.
Quase não há nada nos programas presidenciais sobre a proteção do
patrimônio.
Se iniciasse uma discussão no tempo em que apenas tapávamos
goteiras, talvez hoje já houvesse uma política disponível aos candidatos.
Mas o pássaro da consciência
canta apenas ao entardecer.
Precisamos sempre de grandes traumas para
vislumbrar o caminho.
Algo em nós parece hibernar: suspeito que seja o
raciocínio.
Artigo publicado no Jornal O
Globo
post: Marcelo Ferla
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