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segunda-feira, 10 de julho de 2017

O INTERESSANTE ESTADO DE DIREITO.



O INTERESSANTE ESTADO DE DIREITO.
09.07.2017

Há coisas que não entendo no Brasil. 
Ou melhor, coisas que me esforço para entender. 
O STF, por exemplo, negou a liberdade a uma prisioneira que roubou xampu e chicletes. 
Mas decidiu soltar Rodrigo Rocha Loures, que recebeu a mala preta com R$ 500 mil numa pizzaria. 
Sou leigo e fiquei sabendo que a mulher foi mantida na prisão porque era reincidente. 
Provavelmente roubou um tubo de creme dental no passado e, como essas pessoas são insaciáveis, deve ter levado também a escova de dentes.
Leio no belo livro “Triste visionário”, de Lilia Moritz Schwarcz, sobre o escritor Lima Barreto, que o médico Nina Rodrigues, expoente da Escola Tropicalista Baiana, defendia no fim do século XIX que negros e brancos eram diferentes biologicamente e o Brasil precisava ter dois códigos penais. 
Felizmente, as ideias racistas de Nina, que conheci pelo seu trabalho pioneiro sobre a maconha, foram sepultadas. 
Existe apenas um código penal.
Suspeito, no entanto, que existam diferentes estados de direito. 
A mais generosa versão desse conceito surgiu no país quando começou a ser desmontado o gigantesco esquema de corrupção.
A Lava-Jato é responsável apenas por um terço das conduções coercitivas no país. 
Nunca houve problemas até que, depois da centésima experiência, a operação trouxe Lula para depor. 
Resultado: um grande debate nacional sobre condução coercitiva. 
Em 2013, o Congresso aprovou o instrumento da delação premiada. 
Era destinado a desarticular o crime organizado. 
Ninguém protestou. 
Ao ressurgir na Lava-Jato, a delação premiada precisou se revalidar no contexto do novo e delicado estado de direito.
Marcelo Odebrecht disse que ensinava aos seus filhos que era feio delatar. 
No Congresso, a delação premiada foi definida como a tortura do século XXI. 
E Dilma Rousseff comparou os delatores a Joaquim Silvério dos Reis, nivelando a Inconfidência Mineira ao assalto à Petrobras.
Mostrei num curto documentário como as famílias dos presos sofrem para visitar os parentes no Complexo de Bangu, às vezes, passando a noite ao relento, à espera de uma senha.
A televisão revela agora como Sérgio Cabral recebe visitas à vontade, inclusive como chegam encomendas da rua no setor onde está preso agora. 
Sua mulher, Adriana Ancelmo, está solta para cuidar dos filhos, e a polícia encontrou nas casas da irmã e da governanta joias escondidas por ela. 
Leio nos jornais que numa excursão da Escola Britânica ao exterior, o filho de Cabral foi o único a viajar na classe executiva.
Se a mulher de Cabral ajudá-lo, de novo, a roubar R$ 1 bilhão do povo do Rio, inclusive com prêmios por conceder aumento da passagem de ônibus, creio que, pela leitura da lógica do STF, irá para a cadeia. 
Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex, dizia o velho anúncio. 
A mulher que roubou o xampu deve ser jovem, desconhece slogans publicitários do passado.
Há algum tempo, desisti de esperar uma reação previsível do Supremo. 
Carmem Lúcia, de vez em quando, me consola prometendo que o clamor das ruas será ouvido.
De vez em quando, sim, o clamor das ruas será ouvido. 
Mas o sistema politico partidário brasileiro envolve com seus tentáculos os próprios ministros do Supremo. 
O ubíquo Gilmar Mendes articula leis no Congresso, encontra-se com investigados, discute o preço do boi com Joesley Batista e foi padrinho da casamento de Dona Baratinha, herdeira do clã que enriqueceu cobrando caro para que o povo do Rio viaje nos seus ônibus vagabundos.
A Lava-Jato lançou a ideia de que a lei vale igualmente para todos. 
É uma ideia tão antiga que pronunciá-la parece apenas repetir um lugar comum. 
Vencemos a etapa em que o racismo teorizava um código penal para brancos e outro para negros.
Mas a realidade mostra como existe ainda um grande caminho a trilhar. 
A lei não é igual para todos. 
Ela afirma que os portadores de diploma universitário têm direito à prisão especial.
E cria uma dessas situações que talvez só possa se resolver numa peça de ficção. Nas cadeias do Rio, em condições tão distintas, os cariocas que Sérgio 
Cabral arruinou e o novo rico que a corrupção alimentou.
Na realidade concreta do cotidiano, é um conflito insolúvel. 
A lei vale para todos, contudo, entretanto,você sabe como é, estamos no Brasil, um país que, definitivamente, não tolera roubo de chicletes. 
Como dizem os defensores do estado de direito, vivemos o perigo de um estado policial. 
Hoje o chiclete, amanhã um quilo de açúcar, daqui a pouco os homens podem nos levar pelo simples desvio de um milhão de dólares.
No tempo da corrupção, éramos felizes e não sabíamos. 
Ninguém tinha feito delação premiada. 
Era possível comprar eleições em nove países do continente e, sobretudo, comprar uma Olimpíada. 
O complexo de vira-lata foi jogado no lixo; do pingue-pongue ao polo aquático, gritávamos: Brasil, com muito orgulho e muito amor.
Aí, chegou a polícia.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 09/07/2017

post: Marcelo Ferla
texto: Fernando Gabeira

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