O INTERESSANTE ESTADO DE
DIREITO.
09.07.2017
Há coisas que não entendo
no Brasil.
Ou melhor, coisas que me esforço para entender.
O STF, por exemplo,
negou a liberdade a uma prisioneira que roubou xampu e chicletes.
Mas decidiu
soltar Rodrigo Rocha Loures, que recebeu a mala preta com R$ 500 mil numa
pizzaria.
Sou leigo e fiquei sabendo que a mulher foi mantida na prisão porque
era reincidente.
Provavelmente roubou um tubo de creme dental no passado e,
como essas pessoas são insaciáveis, deve ter levado também a escova de dentes.
Leio no belo livro “Triste
visionário”, de Lilia Moritz Schwarcz, sobre o escritor Lima Barreto, que o
médico Nina Rodrigues, expoente da Escola Tropicalista Baiana, defendia no fim
do século XIX que negros e brancos eram diferentes biologicamente e o Brasil
precisava ter dois códigos penais.
Felizmente, as ideias racistas de Nina, que
conheci pelo seu trabalho pioneiro sobre a maconha, foram sepultadas.
Existe
apenas um código penal.
Suspeito, no entanto, que
existam diferentes estados de direito.
A mais generosa versão desse conceito
surgiu no país quando começou a ser desmontado o gigantesco esquema de
corrupção.
A Lava-Jato é responsável
apenas por um terço das conduções coercitivas no país.
Nunca houve problemas
até que, depois da centésima experiência, a operação trouxe Lula para depor.
Resultado: um grande debate nacional sobre condução coercitiva.
Em 2013, o
Congresso aprovou o instrumento da delação premiada.
Era destinado a
desarticular o crime organizado.
Ninguém protestou.
Ao ressurgir na Lava-Jato,
a delação premiada precisou se revalidar no contexto do novo e delicado estado
de direito.
Marcelo Odebrecht disse
que ensinava aos seus filhos que era feio delatar.
No Congresso, a delação
premiada foi definida como a tortura do século XXI.
E Dilma Rousseff comparou
os delatores a Joaquim Silvério dos Reis, nivelando a Inconfidência Mineira ao
assalto à Petrobras.
Mostrei num curto
documentário como as famílias dos presos sofrem para visitar os parentes no
Complexo de Bangu, às vezes, passando a noite ao relento, à espera de uma
senha.
A televisão revela agora
como Sérgio Cabral recebe visitas à vontade, inclusive como chegam encomendas
da rua no setor onde está preso agora.
Sua mulher, Adriana Ancelmo, está solta
para cuidar dos filhos, e a polícia encontrou nas casas da irmã e da governanta
joias escondidas por ela.
Leio nos jornais que numa excursão da Escola
Britânica ao exterior, o filho de Cabral foi o único a viajar na classe
executiva.
Se a mulher de Cabral
ajudá-lo, de novo, a roubar R$ 1 bilhão do povo do Rio, inclusive com prêmios
por conceder aumento da passagem de ônibus, creio que, pela leitura da lógica
do STF, irá para a cadeia.
Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex, dizia o velho
anúncio.
A mulher que roubou o xampu deve ser jovem, desconhece slogans
publicitários do passado.
Há algum tempo, desisti de
esperar uma reação previsível do Supremo.
Carmem Lúcia, de vez em quando, me
consola prometendo que o clamor das ruas será ouvido.
De vez em quando, sim, o
clamor das ruas será ouvido.
Mas o sistema politico partidário brasileiro
envolve com seus tentáculos os próprios ministros do Supremo.
O ubíquo Gilmar
Mendes articula leis no Congresso, encontra-se com investigados, discute o
preço do boi com Joesley Batista e foi padrinho da casamento de Dona Baratinha,
herdeira do clã que enriqueceu cobrando caro para que o povo do Rio viaje nos
seus ônibus vagabundos.
A Lava-Jato lançou a ideia
de que a lei vale igualmente para todos.
É uma ideia tão antiga que
pronunciá-la parece apenas repetir um lugar comum.
Vencemos a etapa em que o
racismo teorizava um código penal para brancos e outro para negros.
Mas a realidade mostra
como existe ainda um grande caminho a trilhar.
A lei não é igual para todos.
Ela afirma que os portadores de diploma universitário têm direito à prisão especial.
E cria uma dessas
situações que talvez só possa se resolver numa peça de ficção. Nas cadeias do
Rio, em condições tão distintas, os cariocas que Sérgio
Cabral arruinou e o
novo rico que a corrupção alimentou.
Na realidade concreta do
cotidiano, é um conflito insolúvel.
A lei vale para todos, contudo,
entretanto,você sabe como é, estamos no Brasil, um país que, definitivamente,
não tolera roubo de chicletes.
Como dizem os defensores do estado de direito,
vivemos o perigo de um estado policial.
Hoje o chiclete, amanhã um quilo de
açúcar, daqui a pouco os homens podem nos levar pelo simples desvio de um
milhão de dólares.
No tempo da corrupção,
éramos felizes e não sabíamos.
Ninguém tinha feito delação premiada.
Era
possível comprar eleições em nove países do continente e, sobretudo, comprar
uma Olimpíada.
O complexo de vira-lata foi jogado no lixo; do pingue-pongue ao
polo aquático, gritávamos: Brasil, com muito orgulho e muito amor.
Aí, chegou a polícia.
Artigo publicado no
Segundo Caderno do Globo em 09/07/2017
post: Marcelo Ferla
texto: Fernando Gabeira
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