'As famílias deveriam
aceitar as pessoas como elas são': a casa que abriga LGBTs que não têm onde
morar.
Gabriela
Di Bella
De
São Paulo para a BBC Brasil
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Projeta
visa acolher gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transsexuais (LGBTs) que,
por algum tipo de conflito com a família, não têm onde morar.
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"Eu apanhei muito
durante a infância por conta do meu jeito de ser.
Quando fiz 18 anos, assumi
para os meus pais que era gay e eles me mandaram embora.
Ainda insisti em
ficar, mas em 2013 decidi vir embora para São Paulo", conta a travesti
Maria Leticia Ohana Costa, de 24 anos, a Manauara.
Exemplo do tipo de
violência e intimidação que lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais
e transgêneros muitas vezes sofrem por parte das suas próprias famílias,
Manauara foi uma das cinco pessoas que conseguiram encontrar abrigo e
acolhimento em uma iniciativa pioneira no bairro Bela Vista em São Paulo: a
Casa 1, uma mistura de centro cultural com república LGBT.
Inaugurado no dia 25 de
janeiro, aniversário da cidade de São Paulo, e localizada na rua Condessa de
São Joaquim, na zona central da capital, o espaço tem como objetivo acolher
pessoas que, por algum tipo de conflito com a família, não têm onde morar.
Idealizada pelo jornalista
e relações públicas Iran Giusti, de 27 anos, a Casa 1 pode ser considerada um
refúgio num país onde, segundo o Grupo Gay da Bahia - ONG que coleta e divulga
dados sobre o tema -, a cada 25 horas um LGBT é assassinado, o que dá ao Brasil
o título de campeão mundial em números absolutos de violência contra minorias
de gênero.
Segundo dados de ONGs
internacionais, mais da metade dos homicídios de trans do mundo ocorrem no
Brasil.
Em um relatório divulgado
semana passada, a ONG destaca que aqui mata-se mais homossexuais do que nos 13
países do Oriente e África onde há pena de morte para gays e lésbicas.
Luiz
Mott, de 70 anos, antropólogo e fundador da ONG, destaca que São Paulo é o
Estado campeão em assassinatos nos últimos dez anos.
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Iran
Giusti, criador do projeto, diz que casa é refúgio em meio à violência motivada
pela intolerância.
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"Infelizmente, apesar
das algumas politicas públicas, isso não tem sido suficiente para reverter o
quadro de tantas mortes", afirma.
A ONG diz que os casos são
subnotificados porque não há números oficiais de crime de ódio.
"Eu coleto
dados há 37 anos por meio da mídia e de relatos pessoais que me passam, mas
isso é prova da incompetência dos órgãos de segurança pública e direitos
humanos", diz o antropólogo.
Os números têm crescido de
forma preocupante.
Foram 130 homicídios em 2000, com um salto para 260 em 2010
e para 343 em 2016.
A experiência do
antropólogo se alinha com a de Giusti, que também considera que a falta de
dados dificulta um retrato mais exato da situação das intimidações ou agressões
sofridas pela comunidade.
"É muito difícil saber o que está acontecendo
exatamente - não temos classe social, nem idade, não há como traçar um perfil
do LGBT expulso de casa", conta Giusti.
A Secretaria Municipal de
Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo afirmou estar implementando um
sistema de informações para a coleta de dados sobre violações de direitos
reportadas por usuários em dos Centros de Cidadania LGBT.
"Hoje, nossos
quatro centros contemplam cerca de 1.400 pessoas, com atendimento nas áreas
jurídica, psicológica e de assistência social", afirmou a pasta por meio
de nota.
Entre os dados empíricos
que Giusti coleta, ele diz ter notado um forte aumento nos casos de
"exorcismo" organizados por familiares e de automutilação - quando a
pessoa agride o próprio corpo.
Também há casos de
isolamento social, como, por exemplo, quando a família impede acesso a internet
e telefone.
"(Isso) Acontece muito mais com as lésbicas", conta ele.
"A família as isola, ficam de casa para a escola da escola para
casa", conta.
Ele destaca a história de
uma menina cuja família, após descobrir que ela era lésbica, a obrigava a comer
somente o que sobrava após a refeição, e com talheres e pratos descartáveis.
"Não vou dizer que isso me assustou, mas é inacreditável que ainda
passamos por isso."
Os primeiros moradores
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Cindy
saiu e voltou para casa diversas vezes.
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Companheira de quarto de
Manauara, a travesti Cindy Tobias da Silva, de 19 anos, chegou à casa com a
roupa do corpo.
Cindy assumiu a
transexualidade aos 14 anos e começou a se vestir de mulher.
"Quando minha
mãe descobriu que eu estava usando hormônios femininos, me disse que, se era
para fazer isso, era melhor eu ir embora", conta.
Ela saiu e voltou para
casa diversas vezes, morou com uma tia e depois em uma casa na zona norte de
São Paulo, onde fazia programas.
A dificuldade de conseguir um emprego é um
segundo obstáculo crucial.
"Só por eu ser trans eu já sou
'deletada'", diz.
A falta de aceitação pela
família também levou Marcel Borges, de 26 anos, a ocupar uma das camas da Casa
1.
O estudante nasceu mulher, mas nunca se identificou como uma.
Os pais não
souberam como lidar com a transformação física do filho.
"É como se fosse um
luto, a pessoa que eu era está deixando de existir para dar voz ao
Marcel", conta.
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'Quando
raspei o cabelo, vi que não tinha mais jeito e assumi o Marcel'.
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Borges buscou ajuda do
Sistema Único de Saúde (SUS) e vai começar a tomar hormônios.
"Quando
raspei o cabelo, vi que não tinha mais jeito.
Assumi o Marcel, também quero
fazer a mastectomia (cirurgia de retirada dos seios)."
Ele relata os problemas
que teve com a identidade social.
"Já tive colegas de trabalho que se
recusam a me chamar de 'ele'", conta.
Hoje, o jovem também é
ativista da causa LGBT:
"Nunca imaginei que fosse precisar desse tipo de
ajuda, na real isso não deveria nem existir.
As famílias deveriam aceitar as
pessoas como elas são", fala.
Vaquinha online
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Autores
do projeto conseguiram arrecadar R$ 112 mil em vaquinha na internet.
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Foi com apoio de amigos e
do namorado que Iran Giusti tornou a Casa 1 realidade, após uma campanha na
internet que, em 42 dias, conseguiu arrecadar R$ 112 mil.
Toda a verba tem sido
utilizada para pagar o aluguel e custos de alimentação dos moradores.
"Eles vão cuidar da limpeza e da comida, mas vamos fornecer tudo e dar
acesso total às atividades culturais", fala.
A Casa 1 costumava ser um
ponto de venda de drogas, mas agora chama atenção no bairro pelas cores na
fachada e na calçada.
O espaço tem dois andares com oito camas, cozinha e dois
banheiros no segundo piso - e espaço para exposições e cursos no primeiro.
A ideia do projeto é unir
os moradores à comunidade do bairro.
A iniciativa surgiu depois
que Giusti ofereceu o sofá de seu apartamento para viajantes.
"Um dos
hóspedes que apareceu era um menino gay super-retraído.
Para ele foi importante
ver a gente confortável com a nossa sexualidade, conversamos muito com
ele."
O papo rendeu uma carta de
agradecimento meses depois.
"Com a história dele percebemos que a gente
pressiona muito os órgãos públicos, mas esquecemos das pessoas, o importante é
a convivência mesmo", afirma.
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Casa
tem oito camas e espaço para convivência.
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Quando o orçamento
melhorou, Giusti decidiu abrir a casa exclusivamente para LGBTs que
necessitavam de um teto.
"Eu coloquei uma foto bem tosca e ainda expliquei
que não podia dar muita privacidade, mas eu garantia um teto, e a demanda foi
enorme", conta.
A ideia avançou sem
qualquer apoio oficial - ele diz ter ouvido de grandes organizações que a
iniciativa deveria estar ligada a políticas públicas.
"Se eles esperam há
30 anos por coisas como essa, eu não vou esperar.
Estamos colocando a mão na
massa e se tá com medo vai com medo mesmo, porque as pessoas enquanto isso
estão sofrendo, estão apanhando, estão morrendo", diz ele.
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Projeto
para dar teto a jovens LGBT não teve apoio de organizações.
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post: Marcelo Ferla
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