O pensamento de Darcy
Ribeiro sobre o negro brasileiro.
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Darcy Ribeiro foi um dos
intelectuais que melhor entenderam o negro no Brasil (Arquivo)
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Para
Darcy Ribeiro, a possibilidade de existência de uma democracia racial está
vinculada com a prática de uma democracia social, onde negros e brancos
partilhem das mesmas oportunidades sem qualquer forma de desigualdade.
Neste
20 de novembro, Dia da Consciência Negra, leia abaixo trechos do livro O Povo
Brasileiro, de Darcy Ribeiro, uma das obras mais relevantes da história do
Brasil.
Darcy Ribeiro
CLASSE
E RAÇA
A
distância social mais espantosa no Brasil é a que separa e opõe os pobres dos
ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros, mulatos e
índios, sobretudo os primeiros.
Entretanto,
a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do que deveria ser. Não foi
assim no passado. As lutas mais longas e cruentas que se travaram no Brasil
foram a resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão,
que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só
se encerrou com a abolição.
Sua
forma era principalmente a da fuga, para a resistência e para a reconstituição
de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias dos quilombos, que se
multiplicaram aos milhares. Eram formações protobrasileiras, porque o
quilombola era um negro já aculturado, sabendo sobreviver na natureza
brasileira, e, também, porque lhe seria impossível reconstituir as formas de
vida da África. Seu drama era a situação paradoxal de quem pode ganhar mil
batalhas sem vencer a guerra, mas não pode perder nenhuma. Isso foi o que
sucedeu com todos os quilombos, inclusive com o principal deles, Palmares, que
resistiu por mais de um século, mas afinal caiu, arrasado, e teve o seu povo
vendido, aos lotes, para o sul e para o Caribe.
Mas
a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi,
ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na
sociedade nacional. Nela se viu incorporado à força. Ajudou a construí-la e,
nesse esforço, se desfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em função de sua
total desafricanização. A primeira tarefa do negro brasileiro foi a de aprender
a falar o português que ouvia nos berros do capataz. Teve de fazê-lo para poder
comunicar-se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos.
Fazendo-o, se reumanizou, começando a sair da condição de bem semovente, mero
animal ou força energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamente dominar
a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade ao português do
Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o território, uma vez que
nas outras áreas se falava principalmente a língua dos índios, o tupi-guarani.
Calculo
que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12 milhões de negros,
desgastados como a principal força de trabalho de tudo o que se produziu aqui e
de tudo que aqui se edificou. Ao fim do período colonial, constituía uma das
maiores massas negras do mundo moderno. Sua abolição, a mais tardia da
história, foi a causa principal da queda do Império e da proclamação da
República. Mas as classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema de
recrutamento da força de trabalho, substituindo a mão de obra escrava por
imigrantes importados da Europa, cuja população se tornara excedente e
exportável a baixo preço.
O
negro, sentindo-se aliviado da brutalidade que o mantinha trabalhando no eito,
sob a mais dura repressão –inclusive as punições preventivas, que não
castigavam culpas ou preguiças, mas só visavam dissuadir o negro de fugir– só
queria a liberdade. Em consequência, os ex-escravos abandonam as fazendas em
que labutavam, ganham as estradas à procura de terrenos baldios em que pudessem
acampar, para viverem livres como se estivessem nos quilombos, plantando milho
e mandioca para comer. Caíram, então, em tal condição de miserabilidade que a
população negra reduziu-se substancialmente. Menos pela supressão da importação
anual de novas massas de escravos para repor o estoque, porque essas já vinham
diminuindo há décadas. muito mais pela terrível miséria a que foram atirados.
não podiam estar em lugar algum, porque cada vez que acampavam, os fazendeiros
vizinhos se organizavam e convocavam forças policiais para expulsá-los, uma vez
que toda a terra estava possuída e, saindo de uma fazenda, se caía fatalmente
em outra.
As
atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos de antigos
senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo
vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera
força energética, como um saco de carvão, que desgastado era facilmente
substituído por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o
mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela
ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos
consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como
características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão. Essa
visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que
conseguem ascender socialmente, os quais se somam ao contingente branco para
discriminar o negro-massa.
A
nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela
massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra
para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar seus filhos, de
qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente, discriminação e
repressão. Grande parte desses negros dirigiu-se às cidades, onde encontraram,
originalmente, os chamados bairros africanos, que deram lugar às favelas. Desde
então, elas vêm se multiplicando, como a solução que o pobre encontra para
morar e conviver. Sempre debaixo da permanente ameaça de serem erradicados e
expulsos.
BRANCOS
VERSUS NEGROS
Examinando
a carreira do negro no Brasil, se verifica que, introduzido como escravo, ele
foi desde o primeiro momento chamado à execução das tarefas mais duras, como
mão-de-obra fundamental de todos os setores produtivos. Tratado como besta de
carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a
produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de
sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da
abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração que, embora
melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar-se na sociedade e no mundo
cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao
exercício de seu antigo papel, que continua sendo principalmente o de animal de
serviço.
Enquanto
escravo poderia algum proprietário previdente ponderar, talvez, que resultaria
mais econômico manter suas “peças” nutridas para tirar delas, a longo termo,
maior proveito. Ocorreria, mesmo, que um negro desgastado no eito tivesse
oportunidade de envelhecer num canto da propriedade, vivendo do produto de sua
própria roça, devotado a tarefas mais leves requeridas pela fazenda. Liberto,
porém, já não sendo de ninguém, se encontrava só e hostilizado, contando apenas
com sua força de trabalho, num mundo em que a terra e tudo o mais continuava
apropriada. Tinha de sujeitar-se, assim, a uma exploração que não era maior que
dantes, porque isso seria impraticável, mas era agora absolutamente
desinteressada do seu destino. Nessas condições, o negro forro, que alcançara
de algum modo certo vigor físico, poderia, só por isso, sendo mais apreciado
como trabalhador, fixar-se nalguma fazenda, ali podendo viver e reproduzir. O
débil, o enfermo, o precocemente envelhecido no trabalho, era simplesmente
enxotado como coisa imprestável.
Depois
da primeira lei abolicionista –a Lei do Ventre Livre, que liberta o filho da
negra escrava–, nas áreas de maior concentração da escravaria, os fazendeiros
mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas próximas, as crias de suas negras
que, já não sendo coisas suas, não se sentiam mais na obrigação de alimentar.
Nos anos seguintes à Lei do Ventre Livre (1871), fundaram-se nas vilas e
cidades do Estado de São Paulo dezenas de asilos para acolher essas crianças,
atiradas fora pelos fazendeiros. Após a abolição, à saída dos negros de
trabalho que não mais queriam servir aos antigos senhores, seguiu-se a expulsão
dos negros velhos e enfermos das fazendas. Numerosos grupos de negros
concentraram-se, então, à entrada das vilas e cidades, nas condições mais
precárias. Para escapar a essa liberdade famélica é que começaram a se deixar
aliciar para o trabalho sob as condições ditadas pelo latifúndio.
Com
o desenvolvimento posterior da economia agrícola de exportação e a superação
consequente da auto-suficiência das fazendas, que passaram a concentrar-se nas
lavouras comerciais (sobretudo no cultivo do café, do algodão e, depois, no
plantio de pastagens artificiais), outros contingentes de trabalhadores e
agregados foram expulsos para engrossar a massa da população residual das
vilas. Era agora constituída não apenas de negros, mas também de pardos e
brancos pobres, confundidos todos como massa dos trabalhadores “livres” do
eito, aliciáveis para as fainas que requeressem mão-de-obra. Essa humanidade
detritária predominantemente negra e mulata pode ser vista, ainda hoje, junto
aos conglomerados urbanos, em todas as áreas do latifúndio, formada por
braceiros estacionais, mendigos, biscateiros, domésticas, cegos, aleijados,
enfermos, amontoados em casebres miseráveis. Os mais velhos, já desgastados no
trabalho agrícola e na vida azarosa, cuidam das crianças, ainda não
amadurecidas para nele engajar-se.
Assim,
o alargamento das bases da sociedade, auspiciado pela industrialização, ameaça
não romper com a superconcentração da riqueza, do poder e do prestígio
monopolizado pelo branco, em virtude da atuação de pautas diferenciadoras só
explicadas historicamente, tais como: a emergência recente do negro da condição
escrava à de trabalhador livre; uma efetiva condição de inferioridade,
produzida pelo tratamento opressivo que o negro suportou por séculos sem
nenhuma satisfação compensatória; a manutenção de critérios racialmente
discriminatórios que, obstaculizando sua ascensão à simples condição de gente
comum, igual a todos os demais, tornou mais difícil para ele obter educação e
incorporar-se na força de trabalho dos setores modernizados. As taxas de analfabetismo,
de criminalidade e de mortalidade dos negros são, por isso, as mais elevadas,
refletindo o fracasso da sociedade brasileira em cumprir, na prática, seu ideal
professado de uma democracia racial que integrasse o negro na condição de
cidadão indiferenciado dos demais.
Florestan
Fernandes assinala que “enquanto não alcançarmos esse objetivo, não teremos uma
democracia racial e tampouco uma democracia. Por um paradoxo da história, o
negro converteu-se, em nossa era, na pedra de toque da nossa capacidade de
forjar nos trópicos esse suporte da civilização moderna”.
post: Marcelo Ferla
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