Como
a Alemanha usa as escolas contra mentiras sobre o nazismo e o Holocausto
Atualmente, tema faz parte
da grade curricular na 9ª ou 10ª série, quando os alunos têm cerca de 15 anos,
e abordagem inclui atividades fora de sala de aula; adoção do tema enfrentou
desde o início resistência de conservadores de direita, que argumentavam contra
a cultura de memória, alegando que um ponto final deveria ser colocado na
questão.
Por BBC
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Uma flor é vista em
uma laje do Memorial do Holocausto em Berlim, na Alemanha, em homenagem às
vítimas do nazismo. O parlamento alemão também realiza uma sessão especial
nesta quarta (31) — Foto: Markus Schreiber/AP
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O recente episódio em que um
grupo de brasileiros que não acreditam no Holocausto contestou um vídeo
publicado no Facebook pela Embaixada da Alemanha em Brasília colocou luz sobre
uma necessidade que o governo alemão já elegeu há décadas como prioridade nas
políticas públicas: garantir que a verdade sobre a história do nazismo não seja
perdida entre mentiras e boatos espalhados tanto entre adultos quanto crianças.
O genocídio de cerca de seis
milhões de judeus conduzido pelo regime nazista durante a Segunda Guerra
Mundial é um dos episódios mais sombrios da História.
Por isso, na Alemanha, o
Holocausto não é visto apenas como um fato histórico comum; tal abordagem se
reflete, inclusive, na maneira e na frequência com que o tema é tratado em sala
de aula.
Quando estavam na 9ª série e
tinham 15 anos, os alunos berlinenses Willy Hanewald e Franz Kloth tiveram as
primeiras aulas sobre o Holocausto.
Seus professores de História apresentaram o
tema em sala de aula e, posteriormente, organizaram excursões a memorais.
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Entrada do campo de
Auschwitz-Birkenau — Foto: D.W./R. Romaniec
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Willy, que estuda numa escola pública, foi com sua turma
ao campo de concentração Sachsenhausen, localizado nos arredores de Berlim. Já
a escola privada onde Franz estudava organizou uma viagem a Auschwitz, na
Polônia.
"A excursão foi uma
experiência muito mais marcante do que a abordagem em sala de aula.
Acho que é
impossível compreender profundamente a dimensão do Holocausto sem nunca ter
estado num campo de concentração", diz Willy, de 17 anos.
Franz, de 18 anos, teve a
mesma impressão que o colega e destacou outra experiência que o marcou: uma
palestra de um sobrevivente do Holocausto.
"Essas atividades são
importantes, pois somente imagens em preto e branco não são suficientes para
compreender completamente o que aconteceu", ressalta.
Os dois jovens fazem parte
do Comitê de Alunos de Berlim que defende a implementação da obrigatoriedade da
visita a campos de concentração financiada pelo governo no currículo escolar -
o que atualmente não acontece.
"Vivemos atualmente um período cultural
muito frágil, precisamos sempre relembrar o que aconteceu e como aconteceu para
isso nunca voltar a acontecer", diz Franz.
Contra equívocos e falta de
informação
No episódio recente, um
grupo de brasileiros que contestam a existência do Holocausto rebateram nas
redes sociais o vídeo da embaixada alemã, alegando que as informações
publicadas ali eram inverídicas e que o nazismo seria uma ideologia criada pela
esquerda.
Nas escolas da Alemanha, a
abordagem pedagógica sobre esse capítulo histórico procura promover uma
reflexão crítica sobre o passado e a sociedade, além de buscar evitar que esses
crimes voltem a ocorrer no futuro.
"O ensino sobre o
Holocausto lembra as pessoas dos perigos que elas mesmas estão vulneráveis se
expostas a propaganda intolerante, preconceitos, injustiças, humilhação e
violência potencial", afirma Peter Carrier, coordenador de um projeto de
pesquisa da Unesco sobre o Holocausto na educação, promovido pelo Instituto
alemão Georg Eckert.
Atualmente, o Holocausto faz
parte da grade curricular na 9ª ou 10ª série, quando os alunos têm cerca de 15
anos.
"A tematização do Holocausto e do Nazismo é uma parte obrigatória no
currículo de História em todos os Estados da Alemanha", afirma Detlef
Pech, professor de pedagogia na Universidade Humboldt de Berlim.
Apesar de a política
educacional na Alemanha caber aos governos estaduais, a Conferência de
Secretários de Educação, órgão nacional que faz recomendações sobre o ensino,
começou a sugerir na década de 1960 uma abordagem mais profunda sobre o
Holocausto em sala de aula.
Os professores têm liberdade
para desenvolver diversas atividades pedagógicas sobre o tema, entre as quais
estão visitas a memorais.
Porém, essas atividades não são obrigatórias e sua
realização depende exclusivamente da vontade e do empenho dos educadores.
Controvérsia e resistência
O modelo pedagógico atual é
resultado de um debate público que floresceu no fim da década de 1970 na
Alemanha Ocidental, com a exibição da série americana Holocausto, que retratou
a história do genocídio a partir da perspectiva de uma família de judeus
alemães e contou com a participação de Meryl Streep e James Woods.
Além de contribuir para o
debate sobre o tema em sala de aula, a exibição da série introduziu o termo
Holocausto no país.
Até então, o episódio era tratado como perseguição e morte
de judeus.
Essa discussão pública também impulsionou mudanças na abordagem pedagógica
sobre o tema.
"Foi um processo que
começou no fim da década de 1970 com a adoção da perspectiva das vítimas nos
livros escolares.
Esse processo, porém, variou bastante entre os Estados e
dependeu muito dos governos que tinham na época", afirma a historiadora
Juliane Wetzel, do Centro para Pesquisa Antissemita da Universidade Tecnológica
de Berlim.
Segundo Peter Carrier,
coordenador de um projeto de pesquisa da Unesco sobre o Holocausto na educação,
há duas maneiras principais de contextualizar o tema em escolas: no âmbito de
sistemas políticos num bloco classificado como "Democracia e
Ditadura", como ocorre em Berlim; ou no âmbito de regimes políticos
históricos chamado de "Nacional-Socialismo", como no Estado de
Hessen.
A introdução da perspectiva
das vítimas também refletiu em mudanças na formação dos professores.
Atualmente, diversos cursos extracurriculares para educadores sobre a abordagem
pedagógica do Holocausto são oferecidos por, entre outros, memoriais e
instituições de ensino.
Formação do professor e
desafios
A transformação na visão de
ensino sobre o Holocausto ao longo das últimas décadas refletiu ainda em
mudanças na formação dos professores.
Atualmente, diversos cursos
extracurriculares para educadores sobre a abordagem pedagógica do tema são
oferecidos por, entre outros, memoriais e instituições de ensino.
Ao longo deste processo de
adoção desta visão mais crítica, porém, nem sempre essa abordagem fluiu
perfeitamente.
Wetzel conta que, no passado, houve casos de exageros cometidos
por professores, que acabaram culpando e chocando alunos com os horrores do
Holocausto, o que levou alguns jovens a não querer mais tocar no tema.
Além destes percalços, essa
transformação pedagógica enfrentou ainda, desde o início, resistências de conservadores
de direita, que argumentavam contra a cultura de memória alegando que o tema é
passado e um ponto final deveria ser colocado na questão.
Atualmente, com o avanço de
populistas de direita, que possuem representantes em 14 das 16 assembleias
estaduais e também no Parlamento alemão, essa abordagem tem sido colocada
novamente em dúvida por esse grupo.
Em junho, o líder do partido
Alternativa para a Alemanha (AfD), Alexander Gauland, minimizou o nazismo.
"Hitler e os nacional-socialistas não foram mais do que um cocô de pássaro
em mil anos de uma história alemã de sucesso", disse.
Outro integrante da
legenda, Björn Höcke chegou a chamar o Memorial aos Judeus Mortos da Europa,
localizado em Berlim, de "monumento da vergonha".
Diante dessas tentativa de
minimizar o passado, para muitos educadores essa visão de ensino se faz mais
necessária do que nunca.
"O Holocausto é um ponto central da história da
Alemanha, numa época em que a Alemanha trouxe muita desgraça para o mundo.
O
significado central deste período não deve ser subestimado.
As ameaças da
democracia e o que ocorre com o fim democracia também são aspectos
importantes", destaca Tobias Funk, diretor na Conferência de Secretários
de Educação.
Carrier ressalta que o
ensino sobre o Holocausto é importante para lembrar as pessoas dos perigos aos
quais elas estão vulneráveis.
Já Wetzel destaca que o
conhecimento sobre esse passado é fundamental para o entendimento de debates e
decisões políticas atuais da Alemanha.
A pesquisadora acrescenta ainda que a compreensão
sobre o Holocausto, o nazismo e o assassinato de minorias praticados nesta
época pode ajudar a desenvolver empatia por temas atuais, como a crise
migratória e os refugiados que vieram para o país.
O avanço da extrema-direita
e a divulgação de notícias falsas representam, no entanto, um desafio para
educadores.
"Os professores precisam aprender como ajudar os jovens a não
acreditar em tudo que leem na mídia e a questionar", afirma Carrier.
Para
isso, memoriais oferecem excelentes materiais didáticos, muitos disponíveis na
internet.
Para Wetzel, a abordagem
pedagógica sobre Holocausto é um processo em constante transformação.
"A
cada nova geração, a abordagem e transmissão desse tema aos jovens deve ser
repensada.
Atualmente, ela é mais histórica, mas não deve ser tratada como o
Império Romano, por exemplo.
A responsabilidade alemã deve ser deixada clara,
porém, sem sobrecarregar os alunos e sem declará-los culpados", avalia a
pesquisadora.
post: Marcelo Ferla